Por Fernando Correia de Oliveira*
Há muitas décadas se atribui a Abraham-Louis Perrelet, relojoeiro Suíço, a invenção da massa oscilante como processo de se dar corda a um relógio. Mas assistimos recentemente a uma conferência, em Genebra, onde o investigador francês Joseph Flores apresentou documentação inédita, reforçando a sua tese de que foi o belga Hubert Sarton o inventor do relógio automático.
Foi em 1993 que Joseph Flores publicou a análise de um relatório antigo, de 23 de Dezembro de 1778, emitido pela Academia Francesa das Ciências de Paris, que descreve, segundo as palavras dos seus autores, J. B. Leroy e De Fouchy, um relógio de bolso depositado pelo relojoeiro Dieudonnè-Hubert Sarton (1748/1828), do Principado de Liége (hoje Bélgica): “montre qui se remonte par l’effet d’une masse de cuivre agitée par le mouvement qu’on se donne en marchant” (relógio ao qual se dá corda pelo efeito de uma massa em couro, agitada pelo movimento que se faz quando se anda a pé). Ora, isso se parece bem com um relógio que hoje diríamos "automático”.
Mas esta análise, não acompanhada de croquis, não convenceu completamente os historiadores, especialmente os que não têm formação relojoeira. Com efeito, admite Flores, “o relatório é principalmente uma descrição técnica da construção do relógio depositado por Sarton, e para um não técnico, descrever textualmente a disposição de um mecanismo de trem de rodas, é sem dúvida uma coisa um tanto quanta confusa… esse não técnico ficará evidentemente mais convencido por um desenho, um croquis, dando razão à frase de que uma imagem vale mais do que mil palavras…”
Tal como já ocorreu várias vezes no decurso dos últimos anos, e sempre em momentos-chave, recorda Flores, “foi uma circunstância fortuita que fez aparecer um documento a acrescentar ao dossiê da invenção do dispositivo com rotor em relógios automáticos”.
Em Setembro de 2009, Flores tinha acabado de fazer sair “Perpétuelles à roue de rencontre”, quando apareceu um documento inesperado, mas particularmente convincente, e sob a forma de um croqui, que estava nos arquivos da Academia das Ciências de Paris (Instituto de França).
Para se situar um pouco melhor a questão sobre quem inventou o sistema de rotor, é necessário dizer que há 15 anos são citados dois autores para este dispositivo de relógio automático. “Em História, este tipo de situação não é único, mas para manter duas versões é preciso apresentar documentos das respectivas épocas para justificar cada uma dessas atribuições”, faz notar Flores. “De minha parte, e no momento, não penso que seja esse o caso no que diz respeito à atribuição feita a Perrelet”.
Com respeito a Sarton, e segundo Flores, tudo o que já tinha sido dito, na base do relatório, “já era suficientemente revelador para ser tomado em conta pelos historiadores/técnicos da Relojoaria”.
Mas, mesmo assim, parece que a confirmação que faltava para convencer a todos só chega agora, com um documento saído, tal como o relatório, de um organismo oficial.
Flores conta como, em 17 de Agosto de 2009, um amigo, André Thiry, de Liège, no quadro de investigações que estava realizando, dirige uma carta à Academia das Ciências de Paris, para tentar encontrar elementos relativos à aprendizagem de Sarton.
Na volta do correio, Thiry recebe uma resposta, datada de 2 de Setembro de 2009, onde a Academia menciona um desenho, desconhecido de todos. Thiry pede ajuda a Flores para ajudá-lo a identificar esse desenho no contexto da obra conhecida de Sarton.
Sabendo-se que Sarton tinha depositado na mesma altura o seu relógio “automático” e um relógio de pêndulo, a questão era: seria o desenho referente ao relógio de bolso ou ao de pêndulo?
“Lancei-me ao telefone, e quase instantaneamente tive do outro lado a documentalista que, com grande amabilidade, me colocou em contato com os serviços fotográficos, que por sua vez me enviaram uma cópia em baixa resolução do croqui…”, recorda Flores com emoção.
Para alegria do investigador, tratava-se de um croqui de um relógio de bolso.
O que representa o desenho?
Numa folha de aproximadamente 30 x 30 cm, encontra-se desenhado, de forma muito clara, um croquis de um calibre de bolso, comportando uma massa, apelidada no desenho como “contrapeso”, com pivô ao centro, ou seja, em termos atuais, uma massa pendular ou oscilante, dita também “rotor”.
O autor deste croqui, “sem dúvida alguma, o próprio Sarton”, assegura Flores, passou o lápis por toda essa massa, para fazê-la sobressair.
Em seguida, um certo número de círculos são representados, e que representam o trem de rodas do sistema automático. Eles são, aliás, acompanhados de textos explicativos, como o número de dentes de certas rodas, “e que não podem deixar qualquer dúvida sobre aquilo que representam”, acrescenta o investigador. “Além disso, a montagem comparativa do croqui depurada e colorida, com um dos movimentos conhecidos de Sarton, demonstra-o ainda mais claramente”.
No desenho, estão indicados:
1 - Pinhão fixado sobre a roda, engrenado na roda do fuso (sistema de regulação da força motriz)
2 - Roda de 50 dentes, engrenando em duas rodas de 10, cada uma com um sistema autônomo de destravamento.
3 - Esta roda está assentada sobre uma almofada, na platina, com o sistema de destravamento do sentido contrário ao do centro.
4 - Este círculo é fixado com o contrapeso
5 - Círculo para fazer parar a cadeia
6 - Roda fixada ao centro
Num dos lados do documento encontram-se unicamente os textos seguintes: “Montre de m. Sarton de Liege”, e depois, em baixo, a lápis: “Montre qui se remonte d’elle même” Sarton M – 16 déc 1778 – R – 23 déc 1778.
No outro lado, onde o croqui ocupa grande parte da página, encontra-se a mesma inscrição: “Montre de M. Sarton 23 Xbre 1778”, e mais em baixo, à direita, o carimbo da Academia, e em baixo, à esquerda, um pequeno círculo, “que em minha opinião, representa a grandeza real do movimento depositado, ou seja, um pouco menos que 39 mm”, diz Flores.
“A partir de agora, a História tem todos os elementos para ser restabelecida nos seus devidos termos”, conclui.
Os argumentos dos dois lados
O jornalista francês Gregory Pons, que organizou a conferência de Joseph Flores, está completamente convencido dos argumentos apresentados.
Pons faz notar que grandes invenções da história da relojoaria estão claramente patenteadas, sabendo-se o seu autor e a data em que foram registradas. O turbilhão, por exemplo, concebido por Abraham-Louis Breguet, tem o seu registro em 1801. O escape livre, de Pierre Leroy, data de 1748. “Os elementos sobre a espiral de Huygens são conhecidos. Os da âncora de Mudge também”, nota o jornalista.
Mas quem pode fornecer pormenores sobre a tese que atribui o calibre automático com rotor a Perrelet?
Abraham-Louis Perrelet (1729-1826) foi o maior relojoeiro do seu tempo na região de Le Locle, Suíça, o introdutor da relojoaria de precisão na zona das montanhas de Neuchâtel. Não assinava os seus calibres, aliás, como era habitual na época, mas fornecia às grandes fábricas, como Philippe du Bois, ou mesmo à casa de Abraham-Louis Breguet, seu contemporâneo, este considerado como o maior relojoeiro de todos os tempos.
Teria sido por volta de 1770-1776 que ele inventou o chamado “relógio perpétuo” ou “automático”. Sabemos isso apenas por fontes indiretas. Um relatório apresentado em 1776 por H. B. de Saussure à Sociedade das Artes de Genebra diz que “o mestre Perrelet, relojoeiro, fez um relógio de tal maneira que ele dá corda a si próprio, no bolso de quem o use, à medida que se ande; 15 minutos andando são suficientes para que o relógio trabalhe por oito dias. Devido a um sistema de freio, o continuar a andar não prejudica o relógio”.
No ano seguinte há novo relatório, onde se diz que “este tipo de relógio vende-se ao dobro do preço de um relógio de qualidade, mas normal, e o Sr. Perrelet já tem encomendas para muitos”. A Sociedade comprou um dos relógios para examinar o mecanismo.
“Mas quem é que pode atribuir documentos confiáveis sobre a autoria do calibre automático com rotor a Perrelet?”, insiste Pons.
A marca Perrelet existe ainda hoje, mas não tem nada a ver diretamente com Abraham-Louis Perrelet, embora do ponto de vista do marketing sublinhe a “paternidade” do calibre automático nos relógios de pulso que comercializa.
A história do relógio de bolso automático tem sido muito investigada, mas pode se dizer que se fixou o cânone quando Alfred Chapuis e Eugène Jaquet publicaram, em 1952, a obra de referência La Monte Automatique Ancienne de 1770 a 1931. É nela que se atribui modernamente a Abraham-Louis Perrelet a autoria do relógio de bolso com rotor.
Mas, faz ainda notar Pons, no número 113, de Maio de 1949, a Revue Française des Bijoutiers traz um artigo de Léon Leroy, onde este escreve a propósito deste tipo de relógios: “É preciso saudar o mecânico anônimo e de grande talento que concebeu e realizou este sistema simples e eficaz”.
Pierre Huguenin, outro especialista de relojoaria, corrobora esta alegação alguns meses mais tarde, dizendo “esperar que um investigador feliz possa desvendar o que ainda resta de misterioso na origem deste interessante relógio”.
Do ponto de vista de datas, a questão continua controversa, já que as primeiras referências ao relógio automático de Perrelet datam de 1776, enquanto o primeiro documento sobre o relógio de Sarton é apenas de 1778.
Assim, aparentemente, “ganharia” Perrelet. Mas a questão complica-se com o fato dos quatro movimentos automáticos encontrados até hoje, e atribuídos até agora a Perrelet, serem do ponto de vista de conceito mecânico em tudo idênticos ao croqui agora descoberto e que representa os calibres de Sarton.
Pons está convencido da tese de Flores e acha que os quatro calibres são da autoria, ou pelo menos feitos com base no conceito, do belga Sarton.
Flores, relojoeiro de formação, um investigador amador, membro da Association Française des Amateurs d’Horlogerie Ancienne (AFAHA), tem desafiado historiadores da Relojoaria e da História das Ciências a debaterem com ele a tese Sarton. Mas até agora nenhum aceitou.
Flores e um grupo de amigos estão a preparar uma biografia de Sarton. Por outro lado, especialistas em relojoaria antiga, adeptos da tese Perrelet, estão a preparar também obras para saírem ainda este ano, reafirmando a tese de que o relojoeiro Suíço foi o inventor do relógio de bolso automático. A polêmica deverá, pois, continuar.
*Jornalista e investigador do Tempo, da Relojoaria e da evolução das mentalidades a eles ligadas (http://sites.google.com/site/fernandocorreiadeoliveira)