A nata dos mestres relojoeiros independentes
Por
Fernando Correia de Oliveira*
Como nos referimos em crônica anterior, o italiano Vincent Calabrese e o dinamarquês Svend Andersen, foram os fundadores, em 1985, da Académie Horlogère dês Créateurs Indépendants (AHCI).
Por ocasião dos 25 anos da associação, foi editado um livro, contando as etapas mais importantes da AHCI. Como então citamos, está tudo em “The Hands of Time” (“Os Ponteiros do Tempo”), uma compilação de texto e imagens feita pelo australiano Ian Skellern, radicado há muito na Suíça, e especialista neste mundo dos independentes.
Além dos perfis e respectivas obras de Calabrese e Andersen, são abordadas as personalidades e o trabalho dos suíços Antoine Preziuso, Philippe Dufour, Felix Baumgartner, Frank Jutzi, Andreas Strehler, Paul Gerber, Beat Haldimann, Nicolas Delaloye ou Miki Eleta, nascido na Bósnia-Herzegovina mas naturalizado suíço; dos alemães Rainer Nienaber, Marco Lang, Thomas Prescher, Volker Vyskocil, Christian Klings, ou da dupla Matthias e Sebastian Naeschke; dos franceses Bernard Lederer, François-Paul Journe, Vianney Halter e Philippe Wurtz; dos ingleses Gorge Daniels, Peter Speake-Marin e Robert Bray; dos irlandeses John e Stephen McGonigle; do holandês Christiaan van der Klaauw, do chinês Kiu Tai Yu, do austríaco Peter Wibmer, do espanhol Aniceto Jiménez Pita, do finlandês Kari Voutilainen e do húngaro Aaron Becsei.
Entretanto, e aproveitando a presença de mais de mil jornalistas e de mais de 100 mil expositores e visitantes ligados ao setor da Relojoaria e Joalheria, foram lançadas por ocasião de Baselworld 2010 mais duas obras dedicadas aos relojoeiros construtores independentes.
O primeiro trata-se de “Masters of Contemporary Watchmaking”, de autoria de Michael Clerizo, norte-americano baseado em Londres, especializado no mundo do Luxo e da Relojoaria, e que colabora com o Financial Times, o Wall Street Journal, a revista Robb Report e uma série de outros títulos especializados em relógios.
O segundo, “12 – Twelve Faces of Time – Horological Virtuosos”, tem textos da jornalista norte-americana Elizabeth Doerr, que está baseada na Alemanha e que, há duas décadas, colabora com os principais títulos relojoeiros mundiais, e fotos do alemão Ralf Baumgarten, que tem realizado trabalhos premiados internacionalmente.
Havia 1.600 marcas relojoeiras suíças em 1970, antes da chamada crise do quartzo. Atualmente, haverá cerca de 600. Mas, há 40 anos, não havia praticamente relojoeiros independentes. Todos os grandes mestres trabalhavam para as manufaturas mais prestigiadas, como a Patek Philippe, a Rolex, a Omega, a Girard-Perregaux, a Audemars Piguet, a Jaeger-LeCoultre ou a IWC. E as transformações e avanços técnicos obtidos por esses técnicos e inventores (na invenção do cronógrafo automático, de novas formas de rotação da massa oscilante, entre outros) receberam o reconhecimento em nome dessas marcas e não tanto em nome dos homens que os conceberam.
Mas, há cerca de vinte anos, e obedecendo a regras de comunicação e marketing usadas noutros setores do Luxo, as faces até então anônimas, por detrás dos mecanismos, das complicações, dos avanços, começaram a ser conhecidas, fazendo parte da primeira página das manufaturas: o cliente final quer saber isso, quer conhecer a personalidade e o caráter dos autores de preciosidades até então “sem rosto”.
Ao mesmo tempo, e aproveitando o renascimento explosivo do colecionismo em relógios ultra-complicados, muitos desses mestres relojoeiros começaram a abandonar as manufaturas, estabelecendo-se por conta própria. Vendendo as suas invenções às casas de onde tinham saído ou, a partir de certa altura, criando as suas próprias marcas, com produções da ordem das dezenas ou, quando muito, das centenas de peças.
Se, em 40 anos, se passou das 1600 para as 600 marcas, em termos de relojoeiros independentes, saiu-se do zero para cerca da centena. Ora, isso explica a importância crescente que essas personalidades ganharam no setor.
Tanto a obra de Clerizo como a de Doerr e Baumgarten são feitas após périplos de mais de um ano, com tempo passado no atelier de cada um dos relojoeiros abordados, em ambiente intimista, que permite conhecer um pouco mais da personalidade de cada um, de como chegou até aqui, do que pensa fazer no futuro.
O trabalho de Clerizo é notável. Aborda mais substancialmente a obra de George Daniels, Sven Andersen, Vincent Calabrese, Philippe Dufour, Antoine Preziuso, Franck Muller, Aniceto Jiménez Pita, Alain Silberstein, Marco Lang, Vianney Halter e Roger Smith.
Destes, apenas Franck Muller, Alain Silberstein e Roger Smith não estão no livro de aniversário dos 25 anos da AHCI.
O suíço Franck Muller talvez seja o mais conhecido relojoeiro da atualidade, com o seu nome a chegar fora dos círculos da Relojoaria. Ele foi membro da AHCI, e ajudou Svend Andersen a restaurar muitos dos relógios do museu Patek Philippe, em Genebra.
Aliás, a escola do restauro de peças antigas foi o início de muitos destes relojoeiros independentes – isso os obrigou a pesquisa histórica, a compreender as mentes de mestres relojoeiros do passado, a ter aí inspiração para reinterpretações de complicações.
Em 1992, Franck Muller criou com um sócio armênio a empresa Franck Muller e, em 2001, era inaugurado o complexo Watchland, à beira do lago Lemans, sinal do explosivo crescimento da marca. Franck, uma personalidade controversa, com um ego muito grande, perdeu a aura de “relojoeiro independente”, mas continua a conceber calibres ultra-sofisticados e guarda ciosamente o título de “Master of Complications”.
Alain Silberstein, um parisiense, não é relojoeiro. Os seus estudos foram em arquitetura e design. Radicado há muito na Suíça, tem trabalhado com Svend Andersen, Vincent Calabrese e Franck Muller na concepção estética da leitura do tempo.
Uma das características quase sempre presentes nos relojoeiros independentes é a de tentar reinventar as leituras possíveis do Tempo, e a relojoaria ganhou nos últimos 20 anos um novo capítulo, conceitualista, que ainda não parou e continua a surpreender.
Silberstein, com os seus famosos bigodes, é uma figura afável e os seus relógios são facilmente reconhecidos pelas cores vivas usadas nos ponteiros, pelas formas geométricas das partes móveis, sempre com base em calibres mecânicos.
Roger Smith, um inglês, discípulo e admirador confesso de George Daniels, é um relojoeiro cuja obra mantém o classicismo típico iniciado pelo mestre. “Quero que os meus relógios de pulso dêem a sensação de qualidade e tenham o aspecto dos grandes relógios de bolso ingleses”, defende. Se a tradição relojoeira francesa é a de dar maior atenção ao exterior, a inglesa sempre foi a de manter o exterior o mais simples possível e investir num interior onde o calibre seja esteticamente perfeito e as complicações sólidas e equilibradas. Smith é um bom representante disso na nova geração.
O livro de Clerizo, que dedica muitas páginas ao labor de George Daniels, e faz outros dez retratos de corpo inteiro, aborda ainda em planos de duas páginas outros relojoeiros independentes: Felix Baumgartner, Aaron Becsei, Nicolas Delaloye, Romain Gauthier, Paul Gerber, a dupla franco-inglesa Greubel e Forsey, Richard Habring, Beat Haldimann, John e Stephen McGonigle, Rainer Nienaber, Thomas Prescher, Daniel Roth, Stephan Sarpaneva, Peter Speake-Marin, Andreas Strehler, Christiaan van der Klaauw, Kari Voutilainen e Volker Vyskocil. Com o se vê, muitos deles estão também no livro dos 25 anos da AHCI.
A obra Contemporary Watchmaking inclui ainda um útil glossário sobre termos relojoeiros.
Já “12 – Twelve Faces of Time”, aborda de forma intimista os mundos de Philippe Dufour, Paul Gerber, Ludwig Oechslin, François-Paul Journe, Kenji Shiohara, Kari Voutilainen, Vianney Halter, Beat Haldimann, Volker Vyskocil, Thomas Prescher, Roger Smith e Felix Baumgartner.
De novo, alguns nomes que já tinham sido abordados no livro compilado por Ian Skellern para os 25 anos da AHCI ou no de Michael Clerizo.
Na obra de Elizabeth Doerr e Ralf Baumgarten surge pela primeira vez Ludwig Oechslin (diretor do Museu de Relojoaria de La Chaux-de-Fonds, Suíça, considerado como o melhor do mundo). “Tento controlar totalmente os meus relógios, de A a Z, e isso só se consegue se uma pessoa trabalhar completamente sozinha”, diz ele.
Já Kenji Shiohara não é bem um relojoeiro independente. Ele trabalha para a Seiko. Mas este japonês tem desenvolvido nos últimos anos novas leituras do tempo, é considerado como o melhor relojoeiro do seu país e é admirador confesso do trabalho de Philippe Dufour. “Estou mais interessado em sugerir ao público uma nova sensibilidade do tempo e menos em novos mecanismos”, refere.
Entre os três livros – o de Skellern, o de Clerizo e o da dupla Doerr/Baumgarten – foram abordados os nomes dos mais importantes relojoeiros criadores ou conceitualistas independentes contemporâneos.
Faltarão decerto alguns - Jorg Hysek, Gerald Genta, Daniel Roth, Roger Dubuis, Jean-François Ruchonet, Michel Parmigiani, Richard Mille, Maximiliam Busser, Fawaz Gruozi, Martin Braun e Eric Giroud, entre relojoeiros criadores ou personalidades que desenham relógios para os primeiros construírem - são nomes que nos vêm à lembrança.
Mas, munido das três obras agora acabadas de sair, o amante da Relojoaria estará bem equipado para avaliar a criatividade humana num segmento da indústria onde o sonho sempre conseguiu traduzir-se em realidade. Para grande surpresa de todos nós.
Masters of Contemporary Watchmaking, de Michael Clerizo. Edição Thames & Hudson, 2010
Livro de capa dura, 292 páginas a cores
Preço: 53,55 euros
Twelve Faces of Time – Horological Virtuosos, de Elizabeth Doerr e Ralf Baumgarten. Edição teNeues, 2010
Livro de capa dura, 206 páginas em preto e branco
Preço: 79,90 euros
*Jornalista e investigador do Tempo, da Relojoaria e da evolução das mentalidades a eles ligadas (http://sites.google.com/site/fernandocorreiadeoliveira)