Os 25 anos da Academia Relojoeira de Criadores Independentes
Por
Fernando Correia de Oliveira*
Há 25 anos, o mundo assistia ao renascimento do interesse pelos relógios mecânicos, depois de, nos anos 70, a sua morte ter sido sentenciada, mercê dos relógios a quartzo, precisos e baratos que tinham aparecido, numa invasão maciça vinda do Oriente.
Ninguém sabe muito bem porque é que esse renovado interesse pelo mecânico ocorreu – um relógio a quartzo, por mais barato que seja, consegue sempre ser mais exato que um relógio mecânico, embora seja também sempre muito mais barato que ele.
Mas o valor patrimonial de um relógio mecânico é substancialmente superior ao a quartzo – enquanto os primeiros, mesmo de fraca qualidade, podem passar facilmente de geração em geração, passando a peça de família, que se herda de pai para filho, de avô para neto, os segundos, quando se estragam, são para se jogar fora.
Depois, o relógio deixou de ser apenas o objeto para ver as horas – isso pode ser visto nos relógios públicos, ouvido na rádio ou na televisão, está hoje ao dispor nos telefones móveis, nos computadores, nos gadgets eletrônicos que levamos no bolso.
Um relógio mecânico, além de poder contar muitas histórias, fazendo recordar passos importantes da vida – nascimento, casamento, graduação nos estudos, morte e herança, primeiro emprego, promoção... – é um sinal que damos a nós mesmos e ao exterior, sobre o estilo de vida que levamos, sobre a personalidade mais ou menos exuberante que temos.
Depois, aliado a tudo isso, grandes grupos financeiros ligados ao luxo chegaram aos anos 80 com muita liquidez, não sabendo onde investir os lucros que tinham. Uma hipótese foi o segmento dos relógios e jóias. E o marketing da comunicação da relojoaria e joalheria, até então muito cinzento e conservador, passou a se alinhar pelas técnicas e estratégias do mundo da moda e do glamour.
Pois é nessa situação de Fênix renascida que a indústria relojoeira (sobretudo a helvética) se encontrava em 1985, dando os primeiros passos em um quarto de século mágico, onde o crescimento foi exponencial, apesar das crises (como a atual).
Foi neste contexto que dois relojoeiros independentes, o italiano Vincent Calabrese e o dinamarquês Svend Andersen, começaram a pensar em constituir uma associação que pudesse abrigar talentos criativos que trabalhavam fora das grandes manufaturas.
O primeiro passo foi pedir a colaboração gratuita dos títulos da especialidade (naquela altura, bastante menos numerosos do que hoje). Em 8 de Setembro de 1984 era enviada uma carta às maiores publicações relojoeiras mundiais, pedindo-lhes que publicassem um “apelo a todos os artistas e artesãos da relojoaria”, incitando-os a que contatassem Calabrese e Andersen.
A história é agora contada em livro, de autoria de Ian Skellern, um australiano vivendo há décadas na Suíça e que se especializou no mundo muito especial dos relojoeiros independentes.
A obra comemora os 25 anos de uma associação que teve o seu primeiro ato público em 1985, com uma exposição no Museu de Relojoaria de Le Locle, Suíça. Tinha então o nome de Academia dos Criadores Independentes de Relojoaria. Apresentando as suas obras nessa exposição seminal estavam, além de Calabrese e Andersen, outros relojoeiros fundadores: Giovanni Pozzi, Charles Hirschy, Kurt Schaffo, J. K. Snétivy e a empresa La Montre Extra Plate, do Vallée de Joux.
A exposição durou três meses e foi um grande sucesso, tendo a associação mudado então o nome para Académie Horlogère dês Créateurs Indépendants (AHCI), que se mantém até hoje.
Era uma altura em que um relojoeiro independente tinha muita dificuldade em divulgar a sua obra, quando a Internet dava os primeiros passos e as redes sociais como o Facebook ainda não existiam.
A AHCI faz a sua aparição na feira de Baselworld (a maior feira do mundo no setor, em Basileia) em 1987 e aí já eram 12 os membros a exporem coletivamente, representando seis nacionalidades: Bernard Lederer, Gerhard Weigmann e Klaus Erbrich (Alemanha); George Daniels (Inglaterra); Peter Wibmer (Áustria); Giovanni Pozzi e Vincent Calabrese (Itália); Svend Andersen (Dinamarca); Christophe Claret (França); Michel Laugerotte, Franck Muller, Dominique Renaud e J. K. Snetivy (Suíça).
A AHCI mantém até hoje o seu estande em Baselworld, sempre no mesmo local, de passagem obrigatória, mesmo sabendo-se da pressa e da pressão num certame onde estão centenas de marcas e dezenas de milhares de visitantes.
Pelos nomes que temos escrito já se percebe que a AHCI foi o berço de sucessivas gerações de mestres relojoeiros. Os mais bem sucedidos foram deixando a associação, estabelecendo-se em empresas que cresceram rapidamente (algumas, diríamos nós, até depressa demais…).
“Em 1977, quando comecei a trabalhar como relojoeiro independente, encontrei duas grandes dificuldades em encontrar potenciais clientes para as peças que ia produzindo artesanalmente: primeiro, ninguém pensava ser algo extraordinário relógios artesanais, porque havia sempre um amigo que os “fazia”; depois, o fato de eu ser italiano e ninguém pensar que um italiano pudesse fazer relógios”, recorda Vincent Calabrese no livro The Hands of Time.
Em 1984, Calabrese ganhava notoriedade com o seu calibre Golden Bridge – com os componentes montados numa única ponte. Vendeu a patente à Corum, que continua a ter hoje o modelo em produção, sendo até um dos mais icônicos e fazendo parte da história da relojoaria contemporânea.
Com outro não suíço, o dinamarquês Andersen, achou que era hora de tentar reunir outros espíritos e personalidades semelhantes.
“No final dos anos 70, os relógios mecânicos foram declarados mortos, na sequência do colapso da relojoaria mecânica tradicional, devido aos relógios a quartzo”, recorda por sua vez Svend Andersen. “Mas a partir de 1982-1984 ficamos agradavelmente surpreendidos com a lenta subida da procura pelo relógio mecânico. Colecionadores informados começaram a aparecer de novo junto aos relojoeiros independentes, pedindo-lhes novas peças, enquanto grandes grupos financeiros estavam a comprar marcas abandonadas e pedindo-nos que desenvolvêssemos para eles novos produtos”.
Andersen é famoso pelos seus relógios eróticos, com autômatos, ou pela recuperação dos chamados “relógios ao tato”, técnica usada nos relógios de bolso e que permite saber as horas através da passagem dos dedos pela caixa (uma maneira elegante de saber as horas, sem olhar para o pulso…).
The Hands of Time recolhe os perfis e principais obras de Calabrese e Andersen, mas também do lendário Gorge Daniels, o inventor de uma das maiores melhorias técnicas do último século, o escape coaxial, patente que vendeu à Omega.
O alemão Bernard Lederer (por detrás da Blu, com a sua estética facilmente identificável); o suíço Paul Gerber (“Ponteiro de Ouro” no Grande Prêmio de Genebra; o francês François-Paul Journe (hoje dos mais conhecidos relojoeiros contemporâneos, várias vezes Ponteiro de Ouro); ou a dupla alemã Matthias & Sebastian Naeschke (especialistas em relógios de mesa, autômatos e relógios de caixa alta), figuram no livro do aniversário.
Christiaan van der Klaauw, da Holanda (especialista em complicações astronômicas); Kiu Tai Yu, da China (com uma estética muito própria, oriental); Rainer Nienaber, um alemão que produz relógios de pulso, de mesa e de parede; Antoine Preziuso, suíço, que produziu o Opus Two para a Harry Winston; Philippe Dufour, outro suíço, que tem trabalhado complicações para grandes manufaturas, como a Audemars Piguet ou a Gérald Genta; Peter Wibmer, austríaco, especialista em relógios de parede, ultraprecisos e com uma estética moderna; Felix Baumgartner, suíço, a mente por detrás da estética e da complexidade surpreendente da Urwerk, mas também autor do Opus 5 para a Harry Winston; Vianney Halter, francês, que fez complicações para casas com o prestígio da Breguet, da Cartier ou da Franck Muller e criou o Opus 3 da Harry Winston; Frank Jutzi, suíço, especialista em relógios de mesa, com formas inesperadas; Andreas Strehler, suíço, autor do Opus 7 da Harry Winston, mas que tem trabalhado para outras marcas, como a Maurice Lacroix.
Beat Haldimann, suíço, com os seus célebres turbilhões centrais, de pulso; Peter Speake-Marin, um dos mais jovens relojoeiros criadores, e coordenador do livro (“não foi fácil, pois somos todos umas primas-donas”, confessava-nos pessoalmente Thomas Prescher, em Baselworld 2010), que está a iniciar a sua marca própria, fora das asas protetoras da AHCI, com relógios de pulso de linhas minimalistas, mas com calibres ultracomplicados, a sua grande assinatura; Robert Bray, um inglês especialista em relógios de mesa, grandes complicações, e que recriou o célebre H1 de John Harrison; Marc Lang, alemão, com o seu estilo clássico e, ao mesmo tempo, complexo; Thomas Prescher, um alemão completamente despistado, metido no seu mundo criativo, e cujo turbilhão misterioso foi uma das peças mais faladas este ano em Basileia.
Volker Vyskocil, outro alemão, com um estilo depurado, sóbrio, escondendo a complexidade do movimento; Philippe Wurtz, francês, criador de relógios de parede complicados, com formas arrojadas; Kari Voutilainen, outro Ponteiro de Ouro no Grande Prêmio de Relojoaria de Genebra; Aniceto Jiménez Pita, um espanhol, com os seus relógios de pulso de formas excêntricas; Miki Eleta, nascido na Bósnia-Herzegovina mas naturalizado suíço, criador de peças de parede barrocas mas, ao mesmo tempo, modernas, ou de modelos astronômicos; Aaron Becsei, húngaro, que faz relógios de pulso, de bolso e de mesa numa estética e complexidade muito próprias; Nicolas Delaloye, outro jovem criador suíço de relógios de pulso complexos; Christian Klings, alemão, com relógios de formas simples de um lado, complicadas do outro; ou, finalmente, a dupla John e Stephen McGonigle, irlandeses, que baseiam a sua inspiração estética no mundo gaélico, completam o quadro de honra desta Associação.
A AHCI dá hoje apoio a mais de 30 membros, relojoeiros independentes, que fabricam anualmente umas poucas dezenas de peças cada um.
“Na AHCI, você pode tocar no relojoeiro que fez o relógio”, resume assim Svend Andersen a filosofia de uma organização que ajudou a fundar há um quarto de século. Uma associação de mentes geniais que libertaram para sempre as maneiras de ler o Tempo…
The Hands of Time – Celebrating the 25th anniversary of the Académie Horlogère des Créateurs Indépendents (Horological Academy of Independent Creators). Autoria de Ian Skellern (texto e fotos), coordenação editorial de Peter Speake-Marin, edição da AHCI, impresso na Swissprinters IRL, Renens VD, Suisse, 2010.
Livro de capa dura, 200 páginas a cores.
Preço: 40 euros ou 60 francos suíços
*Jornalista e investigador do Tempo, da Relojoaria e da evolução das mentalidades a eles ligadas (http://sites.google.com/site/fernandocorreiadeoliveira)